Nós por nós mesmas
6/9/2006 - Jurema Werneck - Ibase - Brasil
É muito comum nos discursos ativistas no Brasil, principalmente aqueles preocupados com as desigualdades de gênero (e raça, em alguns casos), a afirmação da invisibilidade da mulher negra para a sociedade. Especialmente no que diz respeito a sua ausência na mídia – sendo a televisão o exemplo mais gritante, apesar de se poder afirmar que essa é uma prática corriqueira na produção de imagens nos diferentes veículos de comunicação do país –, povoada de mulheres brancas, preferencialmente louras.
Por trás dessas afirmativas está o repúdio ao etnocentrismo exacerbado dos(as) produtores(as) das imagens, bem como de seus veículos, que exclui a diversidade racial brasileira.
Apóio e creio que todas e todos devemos recusar estratégias racistas como essas.
No entanto, se olharmos mais detalhadamente, veremos que a mulher negra não está totalmente ausente da mídia. Ao contrário, está presente, mas em situações específicas.
Televisões, jornais, revistas, panfletos, manuais, cartilhas, fotografias, filmes, e outros, sejam materiais jornalísticos, de opinião ou de arte, trazem imagens de mulheres negras.
O problema é que essa presença está delimitada a temas específicos, que em nada contrariam o “senso comum” de uma parcela da sociedade. Senso comum que, diga-se de passagem, é povoado de preconceitos e de ideologias em disputa. São pontos de vista estereotipados, ancorados no racismo, no sexismo, nos preconceitos vinculados às diferenças de classe social, que se desenvolvem na mídia com a mesma intensidade com que estão presentes nas estruturas e relações sociais.
Sob esse prisma, somos retratadas por uma profusão de imagens que, geralmente, nos encaixam em papéis específicos. Um deles é o de mulheres descabeladas, chorosas, mal-vestidas. As carentes (quer dizer, pobres) que tornam os projetos sociais de “dar o peixe e ensinar a pescar” necessários e urgentes. Programas que devem estar rigorosamente atrelados às chamadas condicionalidades, que algumas pessoas acreditam ser a forma de obrigar tais mulheres – vistas como incompetentes e incapazes, talvez preguiçosas –, a acessar políticas públicas de saúde e educação e, quem sabe, algum projeto de “qualificação profissional”, cursos que invariavelmente oferecem reciclagem, artesanato, cabeleireiro, manicure e costura. Nem comentarei aqui as potencialidades de tais cursos alterarem efetivamente a condição de vida dessas mulheres. Chamo apenas a atenção para o fato de que eles fazem parte de uma receita pouco criativa, que se repete nas diferentes ONGs, políticas públicas, projetos, programas.
No segundo exemplo, somos retratadas como as “gostosonas”, de sexualidade incontrolável, transbordante e pouco “familiar”, à disposição para que os varões da “melhor” sociedade possam afirmar sua virilidade. No carnaval, tais imagens chegam ao exagero – ainda que, nos últimos anos, as televisões tinham optado por substituir as negras pelas louras atrizes ou “modelos”.
Um terceiro exemplo requer imagens de empregadas domésticas, muitas vezes idosas, descritas por depoentes brancos como doces, ternas. Trata-se de uma espécie de atualização nostálgica das imagens da Mãe Preta, da Bá dos tempos escravocratas. Sem opinião e sem vida além da vida dos brancos, dos senhores, “como se fossem da família”.
Outras imagens virão à nossa cabeça. A maior parte delas, um desdobramento das acima citadas, às vezes fundindo características, outras vezes atualizando-as. Como a imagem da negra grávida ou mãe de vários filhos. Nesta imagem/estereótipo verifica-se uma fusão da negra de sexualidade irrefreada com a da mãe carente-incompetente. Imagem que vai ser completada com o estigma de mães de meninos(as) bandidos(as), para quem a política pública mais necessária é o controle da natalidade. Ou, para os filhos, a cadeia em regime disciplinar diferenciado.
Tais imagens estão e sempre estiveram à disposição da sociedade, formando opiniões, semeando impressões. Propondo identidades que não entrem em contradição com o racismo e os seus privilegiados. No entanto, elas confrontam diretamente o que somos, o que fomos, o que aspiramos ser. São poderosas e, de certo modo, onipresentes.
Porém, cotidianamente, nós, mulheres negras, estamos envolvidas no trabalho de elaborar outras imagens de nós mesmas, outras identidades que recoloquem a dimensão do que somos e que confrontem e recusem os estigmas. Isso tem contido o poder de aniquilamento dessas imagens, em certa medida neutralizando seus impactos sobre nós.
Essa elaboração tem sido feita há anos, décadas, séculos. E tem se desenvolvido à vista de toda a sociedade. Mas somente nós mesmas temos tido olhos para ver e ouvidos para ouvir as mensagens que nos tem sido passadas baseadas na tradição afrobrasileira e ancoradas na vivência corporal e na transmissão oral de preceitos, pressupostos, princípios. Elas estão presentes em todos os momentos da nossa vida, nos diferentes ambientes, oferecendo modelos para a produção de identidades de mulher negra que confrontam e contrariam os estereótipos.
Podemos identificar, nas mulheres negras próximas a nós, exemplos suficientes para desmentir os estereótipos. Por meio de gestos, frases, formas de olhar, são elas que nos mostram a importância do que somos, as possibilidades que temos, nossos poderes. Sem esconder as crueldades e contradições da sociedade baseada no racismo e na super-exploração de uns em prol de privilégios de poucos.
Mas não apenas as mães, avós, tias, vizinhas têm esse papel. Entre nós, como entre toda a população negra na diáspora africana, a música tem sido um espaço privilegiado de resistência, de produção cultural e identitária. De luta. Não é coincidência, portanto, verificarmos que é na música popular que encontramos o maior número de mulheres negras, cuja expressão pública vai muito além de sua comunidade. Cito apenas alguns nomes: Alaíde Costa, Alcione, Ângela Maria, Aparecida, Araci de Almeida, Áurea Martins, Carmem Costa, Clementina de Jesus, Dalva de Oliveira, D. Ivone Lara, D. Selma do Coco, Daúde, Dolores Duran, Eliane Faria, Elizeth Cardoso, Elza Soares, Evinha, Helena de Lima, Jovelina Pérola Negra, Lady Zu,, Leci Brandão, Leny Andrade, Lia de Itamaracá, Luciana Melo, Margareth Menezes, Martnália, Nêga Gisa, Paula Lima. Pepê e Nenen, Sandra de Sá, Surica, Tati Quebra Barraco, Tereza Cristina, Vanessa Jackson, Virgínia Rodrigues, Zezé Motta. Grupos musicais como As Gatas, Trio Ternura e Trio Esperança (ambos formados por duas mulheres e um homem), Fat Family (grupo de quatro mulheres e dois homens). Além de Chiquinha Gonzaga.
São imagens, vozes, performances de mulheres que se parecem conosco, com o que queremos ser, com o que devemos ser. Ativas, lutadoras, sensuais, integradas à tradição e à comunidade e sua cultura. Geniais, belas, intensas. Guerreiras. Como nós.
Fonte: PPCOR